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Feliz aniversário, pai

Hoje é aniversário de meu pai. Não vou ligar porque não adianta, ele morreu em 2011 e mortos não atendem telefones. Se ele estivesse vivo faria hoje 70 anos.

Eu não tenho mais um pai para telefonar e eu não me acostumo com a ideia; não ter meu pai para telefonar é muito estranho. Evito pensar na quantidade de coisas que deixei de compartilhar com ele e isso dói. Sinto vontade de chorar mas isso seria ridículo de se fazer em uma cafeteria de posto onde escrevo este texto agora de manhãzinha. Como não me sinto à vontade para chorar, escrevo.

Tudo o que é lembrança agora dói, como dói saber que meu pai é só lembrança, como dói ainda mais saber que o conjunto de lembranças que tenho dele, de quando convivíamos, era de desajuste.

Ele era difícil. Correto ou não sentia uma necessidade de falar exatamente o que pensava o tempo todo, e nisto ele era no mais das vezes áspero, agressivo e assertivo, especialmente quando falava de algo que o desagradava; quando estava com raiva de alguma coisa, então, não falava, discursava.

Não que meu pai fosse um homem ruim, não era. Meu pai era ótimo em suas piadas engraçadas que, muitas vezes, ultrapassavam o sarcasmo, como também era um homem honesto e verdadeiramente fiel em sua solidariedade aos amigos. Em casa, no entanto, não era nada disto: era mandão e resmungão o tempo todo, especialmente à mesa. Talvez meu pai entendesse que sua casa fosse o lugar em que ele se sentisse seguro para externar o que o irritava, para despejar o que ele não podia dizer no seu dia a dia na delegacia em que trabalhava. Talvez fosse sua forma de responder ao tédio do casamento, ou sua forma de lidar com a frustração de não ser ouvido por nós, filhos, que não concordarmos com ele sobre quase nada, de política à moralidade, o que só aumentava à medida que crescíamos. Para mim era tudo isso. E ele respondia a esta sua frustração não com conversa, mas com agressividade e muitas vezes com berros. Era simplesmente insuportável.

Como eu não podia medir forças com o poder dele eu me especializei em três coisas: ouvir tudo calado, filtrar cuidadosamente o que eu ouvia, por mais que doesse, e esperar de forma fria e paciente pelo momento correto de viver de acordo com o que eu desejava, e não de acordo com o que ele me impunha, ou queria me impor. No fim das contas ele tolerou minhas escolhas, especialmente em relação à minha profissão, e eu não o enfrentei. Deixamos por isso: ele era incapaz de falar sem não brigar, eu incapaz de ouvi-lo sem desistir de conversar em menos de cinco minutos.

Não resolvemos nada disto em vida e, depois que a boa e velha Morte fez o seu trabalho não ficou nada para resolvermos, nada a não ser a incômoda lembrança de que não resolvemos nada.

À medida que envelheço entendo melhor a memória, ou apenas tenho mais memória a entender. Entre outras coisas ela essa faculdade que devolve ao presente o que foi vivido, não importa quão bom ou ruim tenham sido as experiências. Se se viveu demônios de irresolução, ou de arrependimento, quer se queira ou não eles retornam. Basta uma data. Basta um calendário. Basta uma foto. Não é algo que se possa evitar, as lembranças vêm, ponto. É problema meu o que fazer quando elas invadem o presente.

Na falta de coisa melhor eu escrevo. É meio patético escrever, ter alguma pretensão literária com um texto algo confessional, memória que é só queixa sem potência. Pode ser banal. Talvez seja mesmo inútil. Mas faço isso porque não tenho outra forma. Vivo em um tempo no qual o Real me parece uma tragicomédia tão ruim e mal trovada que tenho vontade de continuar calado enquanto me sinto cada vez mais estrangeiro neste mundo. Mas isso me faz me sentir tão só que preciso me objetivar um pouco, apenas para me sentir melhor ou não tão ruim.

Como hoje.

Talvez rabiscar palavras seja a atividade que mais me coloque em contato comigo mesmo. Talvez. Que eu delire rabiscando palavras não atrás de uma verdade mas apenas em busca de um acordo comigo mesmo, já que as possibilidades de acordo amoroso entre mim e meu pai se foram com ele há cinco anos. Não comemoro nenhuma verdade nem nenhuma conclusão do que foi minha vida com ele. A memória que emerge, hoje, só traz coisas reais: a dor que a falta de meu pai faz dói ainda mais porque essa dor e essa falta são ainda mais antigas que sua morte, e isso é real, como é real a impossibilidade dessa ausência ser suprida, e que só me resta a dor de aceitar isso. Como também é real o meu desespero ao perceber esse buraco enorme na minha vida, e como dói ter que me resignar.

Mas há algo ainda mais real que tudo isso, que é o que me tornei ao longo da vida, para pior e para melhor, quando eu e meu pai, silenciosamente, resistimos um ao outro. Essa nossa convivência produziu um homem que transformou sua impotência em uma espera, algo dissimulada, por oportunidades para melhorar de vida, sentir-se um pouco livre, aprender pacientemente tudo o que consegue aguentar ou não. Me fez aprender a esperar e a me observar, a acertar e errar no ofício de viver. Viver em vigília e em espera, mas nunca em esperança, coisa que eu deixei de ter quando aprendi, ainda cedo, que as pessoas amadas viram mortos e que não há absolutamente nada que eu possa fazer em relação a isso.

Datas como hoje são duras, por elas mesmas e por tudo o que elas, mais do que evocar, convocam. Que eu delire nesta data, não importa, a ausência que ela convoca é real, a dor que ela convoca é real, ponto. Como é real seguir adiante em uma insistência cega e teimosa de que uma história continue em múltiplas formas aguarda novos argumentos e versões, para além de seu ponto final.

Feliz aniversário, pai.

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