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Memória Migrante (III)

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Pôr do Sol no Ver-o-Peso. Foto de César Magalhães.

VIVO EM BELÉM DO PARÁ há pouco mais de onze anos. Cheguei aqui em 18 de dezembro de 2004, sem saber exatamente se eu ficaria aqui, com uma filha por nascer, nenhum emprego em vista e uma completa incerteza sobre o que ocorreria dali para frente.

Como todo paulista(no) educado no sul do Brasil, não tinha ideia do que era viver na Amazônia. Sabia o que ela não era, sabia que aquelas imagens todas de matas, pássaros e índios que eu vi na televisão durante anos não eram “a” Amazônia; para mim imagens de televisão quase sempre nunca deixam de ser o que elas sempre são: signos recortados e recompostos apontando para sentidos que, muitas vezes, mais falseiam do que esclarecem aquilo que as imagens referenciam. Com certeza eu sabia (e nem queria) que aquelas imagens fossem a Amazônia que eu estava prestes a conhecer, que eu estava prestes a habitar.

Como todo paulista(no) educado no sul do Brasil, meu choque ao chegar à Belém do Pará foi enorme: cidade cabocla, cidade negra, cidade parda, índio-nordestina, negro-maranhanse, portugália diluída nisso tudo. Nítida separação entre ricos e pobres. Ricos bem ricos, pobres bem pobres. Palafitas e palácios, avenidas que lembram (inspiradas?) a zona sul do Rio de Janeiro e, contíguo a elas, favelas em canais. “Diabos, cadê a classe média daqui?”, eu pensei (paulista(no) adora procurar uma classe média…), mas o que eu mais via era distância: distância de grana, distância de fluxos econômicos e de infraestrutura (caixas de lojas: não havia chegado ainda aquelas maquininhas de pagamento por cartões de débito ou crédito que, aliás, paulista(no) tanto adora…). Distância de informações: internet era um luxo para a maioria da população. Distância nas fronteiras dos bairros… eu mesmo vivia em uma espécie de fronteira: tecnicamente morava em um bairro chamado Batista Campos, mas, na prática, a esquina da casa em que eu vivia era o marco final entre o “primeiro mundo” de Batista Campos e o “terceiro mundo” do bairro dos Jurunas, um dos mais tracionais, antigos, importantes bairros da cidade – e um dos mais marginalizados. Havia distância sim, e muita, ao ponto de eu me perguntar como pode haver tanta distância entre as pessoas em uma capital grande, sim, mas que não era um décimo do tamanho de São Paulo?

Eu tinha que (sobre)viver. Estava em meu próprio país mas, pela primeira vez na vida, senti que havia saído de meu país. Percebi que eu não dominava nada da história da Amazônia, que eu não conhecia nada de sua cultura, de sua vida, de suas pessoas. Eu tinha naquela virada de ano de 2004 e inícios de 2005 um triplo trabalho: arrumar emprego, aprender a ser pai e apre(e)nder o que era o lugar para onde eu passara a viver, dali por diante.

Andei pela cidade de carro, claro, tive que comprar um mais tarde. Mas confesso que, por mais que eu ame máquinas eu detesto ficar preso no trânsito dentro de um carro (mas quem gosta?!?). Decidi que precisava andar pelas ruas: eu precisava de um corpo a corpo com a cidade.

Peguei uma bicicleta emprestada, pedi algumas orientações sobre as ruas principais de Belém e que caminhos eu deveria seguir. Também recebi uma série de recomendações para tomar cuidado com as ruas mais estreitas do bairro da Cidade Velha e com as imediações da Praça da República, medo de assaltos, todas essas coisas ditas de bom coração, mas que eu precisei esquecer se quisesse realmente entender a cidade. Lembro de ter marcado o nome de uma rua que me dava acesso ao caminho da casa onde eu viva à época, com a família de minha ex-mulher, e lá fui eu, gordo (continuo), com cara de turista (não sei se ainda tenho), sem saber bem que direção tomar.

Foi de bicicleta que eu primeiro tomei contato com alguns orgulhos da cidade: a praça Batista Campos, realmente bela; a Cidade Velha, onde hoje trabalho todas as manhãs; e o Ver-o-Peso. Considero que foi de bicicleta, no início de 2005, que tive o meu verdadeiro encontro com o Ver-o-Peso. Me lembro que foi passando de bicicleta por lá que eu olhei para todas aquelas construções defronte ao Mercado de Ferro, como a antiga Alfândega, o Convento das Mercês ou o Mercado de Carnes, que eu senti que estava em uma das partes mais antigas e preservadas do Brasil, ainda que muita coisa tenha sido destruída. Senti que estava em outro território, que a língua era comum, mas que a vida, a dinâmica, os processos, eram outros. Era tudo muito antigo, era possível sentir a presença dos séculos XVII e XVIII ali, tudo tão diferente do meu Estado natal. Como se diz hoje, outra vibe. Eu me senti imediatamente atraído pela cidade, me senti imediatamente feliz pelas suas cores, pela sua proximidade com as extensões enormes das águas da baía do rio Guamá, e intui que ali era o meu lar, dali para frente, e que eu não sairia mais de Belém e da Amazônia.

Sobretudo foi nesses primeiros passeios de bicicleta que eu comecei a sentir o que era a Amazônia, pelo menos para mim. Para entender: durante anos da minha vida sofri sérias crises de ansiedade (ainda as tenho, embora mais controladas) e de episódios severos de depressão. Só quem passou por isso sabe o inferno que é. Por conta da depressão desenvolvi uma espécie de aversão ao pôr do sol. Desde minhas piores crises de depressão, entre 1999 e 2000, o entardecer passou a ser tão melancólico para mim que eu sempre dava um jeito de me esconder em algum canto, lá pelas 17:00, e só sair depois que tudo estivesse escuro. Posso dizer que, entre 2000 e 2005, eu simplesmente não conseguia suportar o pôr do sol. Precisava ir da luz à escuridão sem passar pela metamorfose das tardes, sem passar pela hora mágica do pôr do sol – dolorosa demais para mim.

Foi em um desses passeios de bicicleta, em janeiro de 2005, quando eu passava em frente ao Ver-o-peso que eu olhei para o horizonte e disse para mim mesmo:

_ Que entardecer lindo que está fazendo!

Quase que instantaneamente me toquei do que eu acabara de dizer. Fiquei tão emocionado que tive que descer da bicicleta, me achegar até a amurada da beira da baía e ficar lá, por uns minutos que fosse, somente curtindo o por do sol, feliz como um menino que recebesse um brinquedo novo, feliz como se algo quebrado tivesse sido consertado. Eu sempre fui alguém, desde jovem, sombrio e noturno. Eu ainda sou. Mas, ali, naquele mês de janeiro de 2005 eu finalmente tinha achado um lugar solar que me equilibrasse na medida certa: sol forte, espaços abertos, muita água, muito verde e muita força, uma força que vinha dos céus fechados, tão prata e chumbo anunciando chuvas gigantes – eu que amo tanto chuva! Dias de céu limpo ou céu forte que combinavam com noites quentes que, quando não nubladas, revelavam luar e estrelas brilhantes – uma linda lua cheia. Isso o que me equilibrava, me iluminava: o tempo da cidade, sua antiguidade, sua identidade forte, e a vastidão de rios e ilhas que a limita. Meu amor pela cidade aumentou quando descobri o povo, depois. E, como nem tudo são flores, também descobri como pode ser difícil viver em um lugar com tanta distância entre suas fronteiras humanas.

Mas isso é tema para outras escavações.

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Entardecer no Ver-o-Peso. A feira com uma das torres do mercado de ferro ao fundo. Cidade limitada pela vastidão. Foto de Pedarilhos.

2 Comments

  1. Uma bicicleta ajuda sempre a ver o mundo com outros olhos… 🙂
    Belíssima foto!

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