Leituras

Hoje eu reencontrei Clarice Lispector

Confesso que durante anos eu fugi dos textos de Clarice Lispector. Não que nunca tivesse lido nada. Não é isso. Meu primeiro encontro com Clarice Lispector ocorreu quando eu era um adolescente e, por acaso, eu assisti na TV Cultura de São Paulo (morava eu nos anos 1980 em Penápolis, na noroeste paulista, a famosa entrevista de 1977 da escritora, feita pouco antes de sua morte.

Me lembro também de alguns trechos de textos de Clarice Lispector lidos ainda no colegial (hoje chamado antipaticamente de “segundo grau”). Aqueles textos me perturbavam. Não me lembro deles totalmente, mas tenho gravado em mim a impressão causada no adolescente que eu fui – que talvez eu ainda seja um pouco. 

Sei que eu fugi dela. Ou melhor, eu evitei os seus efeitos até que eu me sentisse pronto para ela, pronto para suportar o texto de Clarice Lispector. É este o verbo que eu uso, “suportar”, não entender. Talvez agora porque eu esteja mais adulto e, como dito pela própria autora no documentário acima, quando se é adulto se é “triste e solitário”. Talvez agora eu entenda o que é essa tristeza e essa solidão do adulto que foi tema da literatura de Clarice Lispector. Poder suportar o exame da interioridade que sua literatura pressupõe, poder suportar a carga de feminilidade existente em seu texto e experimentar algo disso funcionando no leitor – no caso, funcionando em mim, é algo que agora se torna possível. O texto de Clarice Lispector exige esse trabalho do leitor, de deixar de ser ele mesmo, de poder transmutar-se em outra coisa, talvez desfazer-se e estranhar-se até finalmente “tornar-se aquilo que se é”…

Confesso que esperei muito tempo para encarar os textos de Clarice Lispector do jeito que merecem ser encarados: lendo devagar, sem procurar entender. Não entendê-los, mas senti-los e degustar das palavras, desfazer-se nelas até sair diferente do outro lado, nem no final do livro, mesmo no final da página, às vezes do próprio parágrafo.

Para mim ler os textos de Clarice Lispector é como ser levado por um turbilhão íntimo feito de verdade. Não “verdade” como a confirmação de um valor ou de um ponto de vista, algo com um “você está certo” ou “fulano tem razão”. Nada disso. Trata-se de um outro tipo de verdade, muito dura, direta, dita sem ornamentos como se fosse um chicote feito de verdade, ou mordida de um bicho feito de verdade; uma verdade estranha formada no texto a partir das disposições contingenciais de um estranho tipo de Ser, não um Ser como essência mas manifesto a todo momento em que os personagens, sejam nas relações que travam consigo mesmos, seja em relação com os outros, se transformassem a todo o momento em algo que eles sempre estão a vir-a-ser, algo que ocorre no momento em que tentam entender quem eles são em relação aos outros, quem eles são em relação à eles mesmos, quem eles são em relação à natureza. A cada momento é como se a interioridade dos personagens virassem em uma espécie de caleidoscópio, e que a cada virada  o tempo todos eles se encontrassem cada vez mais puros, cada vez mais despidos, cada vez mais mutantes e, por isso mesmo, cada vez mais próximos de uma espécie de verdade substancial. Verdade feita de choques, de estranhamento, de solidão, de quebras de expectativas, feita de uma exatidão assustadora quando os personagens principais vão entendendo cada vez mais quem eles são – como Lóri em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, que se faz não bela e estonteante, mas “o mais bonita que ela pode ser”, ou que se olha no espelho e se percebe diferente não por ser bonita, mas por ser mulher. Como ser atraente, ou ser notada, não por ser bonita, mas por ser mulher? Por fazer-se mulher? É deste tipo de construção, de verdade que Clarice Lispector trata.

É preciso estar pronto para ela. Alguns estão prontos desde a adolescência. Eu posso dialogar com ela agora. Então vamos, eu Clarice, Macabéia, Loreley, Ulisses, Mineirinho, vamos que nunca é tarde para começar uma boa conversa.

5 Comments

  1. Meu primeiro contato com a Clarice foi lendo um texto chamado “Felicidade clandestina”; li-o numa das minhas aulas de literatura, no primeiro ano do ensino médio. Lembro dos gestos da professora (que é, até hoje, minha favorita) lendo e pausando para nos explicar o que a autora queria dizer. Acho que foi isso que deixou a experiência mais intensa.
    Esse foi o primeiro vídeo que vi dela, primeira vez que ouvi a voz dela, e confesso que esperava um pouco mais de vivacidade (ou falsidade?!). Depois, prestando um pouco mais de atenção, fui ligando os textos, os diálogos, os pontos e disse “essa é realmente ela”; ainda sim desapontada, tinha uma expectativa que nem eu sabia que existia, mas me conformei.
    Clarice é Clarice, e é isso que a torna tão especial.
    Um abraço!

      1. Não espere dos escritores que eles sejam efusivos. Ao contrário, eles podem ser as pessoas mais desinteressantes do mundo. São, em geral, o contrário do que achamos que eles são. O trabalho deles os obriga a criar a partir de algum outro lugar que não é o do público, o da fama, o do debate de ideias, o da opinião. O lugar de onde eles partem é o da Língua, o da linguagem, o da imaginação, o da existência. Eles se preocupam, antes de tudo, com as palavras, com os efeitos que as palavras podem causar no espaço da leitura e na imaginação de quem, porventura, os lê. Isso está longe, muito longe, de qualquer interesse relacionado a ser conhecido. Escritores com “E” maiúsculo preferem ser entendidos e sentidos a serem conhecidos e a falar em público.

        Uma outra distinção: enquanto se trabalha em um texto se é escritor. No momento em que se publica um texto e se se preocupa com a leitura, a circulação, a promoção de um texto, se é autor. O escritor termina onde o Autor começa. E escritores, em geral, são coisas muito diferentes de autores. Autores se comunicam com seu público, dão conferências, aparecem na TV. Escritores escrevem. Nem sempre alguém convive bem com essas duas facetas.

    1. Interessante como os mesmos materiais de memória podem trazer impressões diferentes. Eu assisti esse documentário há muitos anos atrás (nem se sonhava em existir YouTube ainda!), e eu era muito jovem. Sabia que ela já estava doente quando concedeu a entrevista, mas o que mais me impressionou foi exatamente este contato com a morte, a frase dela “agora estou morta”, e a forma grave, direta, sem nenhuma afetação, sem nenhuma encenação com que ela dizia isso realmente me impressionou.

      Me lembro, hoje, de uma professor meu de Filosofia lá da UNICAMP, o prof. Luís Benedito Orlandi, que comentou uma vez que “a obra de um autor se realiza nele”. A obra de Clarisse Lispector com certeza se realizou nela. Daí esse caráter direto, aparentemente “frio”, mas com uma intensidade fenomenal. O texto dela tem uma autenticidade, uma sinceridade que vem de algum outro lugar para além, digamos assim, da pessoa Clarice Lispector. Eu tenho certeza de que ela sabia disso.

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