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“Eu não sei o que escrevo”…

Neste Carnaval dois queridos amigos, escritores aqui em Belém do Pará, se reuniram em minha casa para uma boa conversa regada a várias cervejas e algum whisky. Entre um documentário e outro sobre rock’n roll retomamos algumas conversas sobre o que é o fazer literário, sobre a criação literária.

Um destes amigos estava visivelmente incomodado com o seu processo de criação, literalmente exasperado em seus sentimentos em relação ao que escrevia. E, lá pelas tantas, ele soltou uma frase ótima, que resumiu como ele sente em relação à sua própria obra: “Eu não sei o que eu escrevo. Quando termino um texto, eu me sinto uma fraude. São coisas que eu vejo, coisas que eu colo em meus contos, mas eu não vivi o que escrevo, as situações que eu invento, não são coisas que aconteceram. Não é verdade!”.

A conversa seguiu quase como um consolo: “não, não é bem assim”; “mas é ficção”, etc, etc. Mas nada do cara se sentir melhor, e era fácil de perceber isso pelo aumento considerável da cerveja que ele entornava.

Anotei em um caderno a frase “Eu não sei o que escrevo”, porque sabia que, naquele momento nada do que eu dissesse o faria sentir melhor. E para responder a uma pergunta que eu mesmo me fiz: será que eu também sei sobre o que eu escrevo?

A resposta é não, e nunca saberei. Assumo que também “não sei o que eu escrevo”. Primeiro porque eu escrevo como se eu fosse morrer no exato momento em que desencostar o lápis do papel quando escrita a última letra de uma última frase. Faço tudo o que posso para que qualquer coisa que eu escreva não seja a última, ainda que eu demore bastante para publicar alguma coisa. Fico inquieto e ansioso para fazer o próximo traço, a próxima letra, a próxima linha, procurando uma surpresa, qualquer coisa que trace uma fenda naquilo que eu sei, naquilo que parece ter sentido. No fundo nunca sei direito sobre o que estou escrevendo, mesmo o que estou escrevendo porque nunca se trata de exlicar o que eu vivo ou o que eu vivi, mas de limpar o terreno para o qianda hei de viver, o que ainda há de acontecer, principalmente para ter certeza de que não estou morto.

Principalmente não sei daquilo que eu escrevo porque, enquanto eu escrevo alguma coisa ela está acontecendo. Sempre penso que escrevo para manter algo acontecendo, algo durando, alguma coisa que não acabe e que possa viver por si só, depois de mim, mesmo quando que parar de escrever. Como saber sobre o que se escreve quando tudo o que se faz é entregar ao outro uma procura daquilo que se chama, comumente, de Vida? Vida presente, vida cortada em uma duração presa a um suporte de papel e grafite, ou qualquer outro suporte, qualquer outra coisa que se constitua em um espaço onde esta procura durará por si só, independente de mim e, ao mesmo tempo, eu em produção?

E lógico, também não sei por que eu escrevo porque entendo que escrever é procurar uma espécie de liberdade interior sem a qual qualquer outro tipo de liberdade fica comprometida. Uma liberdade de existir, criar um espaço no qual seja possível existir livremente, mesmo que seja pequeno, pouco, quase insignificante. Porque nada se sabe do que se escreve quando escrever é vida em exercício, vida em liberdade virando frases sem obedecer cláusulas de um contrato. Frases que são instantes em que apenas se existe e isso já é o bastante.

Para quem busca a surpresa do que pode acontecer no próximo rabisco, na próxima letra, frase, saber sobre o que escrever acaba sendo algo completamente desnecessário. Se o que escrevo tem algum sentido ele é construído depois, só quando algo já foi vertido para o papel e, aí sim, vê-se que forma ele vai tomar. Mas isso já é outra coisa.

No fundo adentrar o turbilhão é o que importa. Escavar-se. Escavar o mundo, assaltá-lo e decompô-lo para juntar tudo no turbilhão do lápis no papel, nas mãos no teclado, não importa. Decompor o mundo e recompô-lo em um espaço próprio. Não se escreve para dar explicações mas para construir mundos – mesmo que seja um mundo interior e fixar um acontecimento. Porque quando algo é escrito um mundo foi criado, um lugar foi criado. Um lugar verdadeiro, mesmo que inverídico; real em sua virtualidade; sincero em sua artificialidade, e que isso seja jogado para o “Real”, seja lá o que isso tenha se tornado.

Ao menos para mim não interessa muito sobre o que escreve quando o que se quer é atingir a possibilidade de surpresa do segundo seguinte, quando o que se pode fazer é jogar com o pode acontecer na nossa mente e em nosso corpo a cada rabisco seguinte que transforma o instante futuro em presente contínuo e daí em passado, como quem aposta uma corrida contra o próprio Tempo até se cansar, pronto para perder para ele sempre, mas insistindo em lhe roubar algo de criação e de possibilidade de vida a cada corrida perdida — e fazer do que se consegue deste roubo ao tempo um lugar um pouco mais elaborado, um pouco mais bonito.

Meu amigo talvez se sinta uma fraude por acreditar que o que ele escreve não é ele, ou não aconteceu de verdade. Será que ele não entendeu que ele é aquilo que ele faz do mundo e de si mesmo enquanto escreve?

Eu não sei.

2 Comments

  1. Pode não ter ocorrido de forma bruta, sólida, mas cada letra que ele escreve é uma parte, independente do tamanho, dele, ocorreu perceptivelmente ou não com ele.

    1. Concordo contigo, Immortal SápioSexy!

      O lance é que ele ainda não percebeu que a ficção engendra um outro processo de verdade, de conhecimento. O mais louco é que ele ainda fica procurando o real quando deveria passar mais tempo pensando no que e como a obra dele mesmo mexe com seus leitores – e com ele mesmo.

      Aparece por aqui, Astronômica! Abraços!

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