produção literária

ELOGIO AO PAPEL EM BRANCO

Escrevo este texto de forma manual: papel e caneta, ainda que eu ache que praticamente toda escrita seja, no fundo, manual. Aproveito um tempo sem internet para tentar, ao menos, diminuir a minha angústia por não poder acessar os meus arquivos e, principalmente, por toda a minha angústia com tudo o que eu tenho o que fazer quando eu acessá-los.

Por isso o papel e a caneta. Escrever à mão me ajuda muito. É o que eu mais gosto de fazer, principalmente escrever em uma folha completamente vazia. Nunca tive problemas com a chamada “maldição do papel em branco”. A folha vazia, para mim, é um espaço de liberdade, uma plataforma de criação. Ela é sempre possibilidade, é sempre um espaço vazio a ser preenchido por palavras e frases. Se elas ficarão boas ou não, isso é um outro problema. Mas a sensação de liberdade que uma página vazia proporciona, essa sempre me foi bendita!

Sempre foi assim. As folhas em branco eram minhas cúmplices, junto do lápis ou da caneta, no momento de criação das minhas redações escolares, em notas de estudo para o vestibular  ou, de forma mais pretensiosa, em uma eventual colaboração para o jornal da cidade onde cresci. Eu achava legal escrever pelo fato de que para um garoto tímido, fechado em si mesmo, algo recluso e nada bom no futebol, escrever me propiciava liberdade e poder: pelos textos, eu me sentia livre e poderoso!

Em primeiro lugar livre porque, escrevendo, eu fazia algo que dependia inteiramente de mim, que estava ao alcance de minhas capacidades e que permitia que eu pudesse me expressar, me comunicar, me ligar às outras pessoas, o que me tirava de minha enorme solidão de adolescente. E poderoso porque, me sabendo fraco, eu sentia que poderia exercer um poder sobre mim mesmo, e sobre os leitores, de explicação, de convencimento, talvez até de encantamento. Um tipo de poder bom que não dependia da força bruta, da violência física, da agressividade dos meninos ou do sarcasmo e da competição das meninas para que se pudesse manifestar. Era um poder que dependia da linguagem, que dava trabalho, mas que permitia convencimento e sedução. E eu sentia que tudo isso a página em branco me permitia.

Assim eu comecei, pegando uma caneta e escrevendo textos ora mais curtos, ora mais longos, com uma argumentação amadora, bem opinativos e, claro, ideológicos, como todo menino de quinze / dezesseis anos que se acha o centro do universo. Minha caligrafia era (ainda é!) uma droga, mas era com ela que eu escrevia, rabiscava, cortava partes, vertia tinta no papel, procurando a melhor forma de escrever uma sentença, me concentrando e brigando comigo mesmo para encontrar uma palavra. Mas eu gostava tanto disto que não queria escrever nem em um papel pautado – eu não queria linhas me dizendo a direção para onde seguir! As linhas, essas eu deixava para a máquina de escrever e, anos depois, para o computador.

Tudo o que eu queria era, apenas, preencher o vazio da página, como quem traça um rumo. Queria correr pelo vazio imenso da página, grande o suficiente para que eu me fizesse alguém nela. Os textos, naquela época, não valiam lá grande coisa, mas isso não era importante: escrevendo eu era livre, espontâneo, feliz!

Veio o tempo dos estudos superiores, o fim da adolescência, a vida adulta. As exigências de qualidade da escrita e do pensamente aumentaram muito, muito mais do que o garoto que eu fui um dia podia imaginar. O aumento de auto-exigência com os textos teve como resultado a perda de todo um romantismo adolescente (o que foi bom) e o preço pago foi a perda da espontaneidade (o que foi péssimo, pois tudo ficou um pouco mais pesado). Os textos ganharam maturidade, ainda que eu me sentisse um pouco menos feliz, apesar de mais sólido; afinal, eu havia me tornado um homem, mas sentia falta daquela leveza, daqueles dias de menino escrevendo e se achando um pequeno e ingênuo Deus. Essa ilusão eu perdi.

Somente uma coisa não mudou: eu continuei sentindo que me expressava bem melhor escrevendo do que falando. Até hoje.

Não entendo a metáfora da página vazia como algo intimidador. Nunca entendi alguém, fosse um colega, um amigo ou um professor, falar da página em branco a ser preenchida como algo negativo, como se fosse um ringue de luta ou um campo de batalha. Os erros de escrita e não achar uma palavra certa, isso são coisas intimidadoras. A autocensura na hora de escrever é intimidadora. O que os outros vão pensar é intimidador, mas a página, essa não. A página em branco, pude sentir, é um território a ser ocupado, um mundo a ser criado, uma plataforma, terra a ser revolvida, arada e semeada. Nunca foi culpa da página em branco se lhe era lançada má semente, ou se ela abrigava infernos, cemitérios ou vulgaridades ao invés de jardins de Éden de liberdades, por mais que a beleza ali plantada fosse estranha, terrível ou melancólica.

Nunca foi.

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