Memória

Lembrança dos primeiros tempos de uso dos editores de texto.

Escrevo em um editor de textos Joe, ou Joe’s Own Editor. Trata-se de um programa de edição de textos parecido com o WordStar, inclusive com seus comandos de teclado bem parecidos. Ele vem instalado como um dos aplicativos de edição de texto em linhas de comando, precisando apenas acioná-lo pelo nome do programa.

Há tempos não escrevo em um editor de textos em linha de comando. Aliás, há tempos não escrevo NADA em nada parecido com um editor de textos em linha de comando. Por que agora estou testando este carinha aqui? Não sei, com certeza por curiosidade, mas porque, de certa forma, pelo fato de que eu não havia trabalhado com nada parecido com o WordStar na minha vida.

Um instantâneo do Joe's Own Editor (JOE).
Um instantâneo do Joe’s Own Editor (JOE).

Quando comecei a escrever em computadores minha experiência era nula. Eu vinha da cultura da máquina de escrever, havia aprendido datilografia durante o colegial e trabalhava usava uma máquina de escrever Olivetti Lettera 82 para redigir os meus trabalhos finais na Universidade. No entanto, em 1992 eu iniciava as primeiras versões de meu projeto de iniciação científica, e fazer tudo na máquina de escrever se tornou algo bem difícil. Claro, a máquina de escrever era prazerosa, mas havia a necessidade de redatilografar as páginas quando havia algum erro, e o TEMPO, já naquela época, começava a se transformar em um capital precioso. Pergunto-me até hoje se o que me motivou a usar os computadores para escrever o meu projeto de pesquisa, e não o método de compor tudo em máquina de escrever, não foi o medo de perder os prazos de inscrição de meu projeto e pesquisa, o medo de não dar tempo de terminar a tarefa. Isso era algo terrível, perder o trabalho por achar que o tempo de composição do texto na máquina de escrever seria maior, que não daria tempo! Pensando bem, foi isso que, naquele momento, me fez correr para a frente de um computador.

E lá fui eu para a frente do computador, para aquela tela escura com caracteres verdes e um bloco de luz piscando na tela. Lembro-me até hoje da Luciana, a funcionária do Centro de Processamento de Dados do IFCH/UNICAMP, onde fiz minha graduação, me explicando como funcionava o Microsoft Word 5.5 para DOS, primeiro editor de textos que eu usei.

A experiência foi engraçada, para dizer no mínimo. O armazenamento dos textos era feito naqueles disquetes de 5 1/4, grandes, bastante flexíveis (e quebradiços). Frágeis, muito frágeis.

Aprendi os comandos básico e comecei a escrever no computador. Logo duas coisas me incomodaram: a intensa dor na mãos pois, acostumado com a máquina de escrever, eu usava muita força para digitar as teclas. Não demorou mais do que meia hora digitando para que minhas mãos e braços estivessem com uma dor aguda, muito incômoda, uma dor que começava nos dedos e ia até os ombros, como se alguém estivesse apertando os meus ombros; e a dor na vista, que não demorava muito se tornava uma dor de cabeça daquelas, muito causada não só pela luz do monitor de fósforo verde, mas também pela necessidade de rolar o texto pela tela do computador, rolar o texto para cima e para baixo, tela acima e tela abaixo, como se fosse um papiro virtual. Me dava dor de cabeça ter que ver aquelas palavras todas rolando para cima e para baixo em frente aos meus olhos, procurando perceber como um parágrafo havia ficado, se faltava alguma coisa a ser corrigida….

A sensação era horrível! Porque haviam palavras mas, com o computador, faltava uma coisa: a sensação do texto tangível, do texto escrito, materializado à minha frente. O computador NÃO dava uma sensação de totalidade, algo que eu estava acostumado a fazer com a máquina de escrever. E, naqueles dias de telas de fósforo verde, de rolagem de páginas sem muita clareza da forma final do texto, da necessidade de corrigir a redação, de editar o texto. Era preciso me acostumar com uma nova forma de projetar o texto, de criar o escrito, de compô-lo, e isso era um novo aprendizado, uma nova atenção, uma nova forma de comportamento diante da página. O computador exigia um novo tipo de concentração, e isso era o mais difícil naquele momento: me concentrar na escrita do texto enquanto eu me lembrava qual sequência de botões eu deveria apertar para saber se o arquivo estava salvo, que comandos dos menus eu deveria usar para formatar o espaçamento do parágrafo…. Diante de tudo o que eu havia aprendido sobre o processo de escrever, usar o computador era uma outra coisa.

Claro, com o tempo, tudo isso foi ficando mais fácil. E eu e meus amigos nos divertíamos muito, lá por 1993-1994, passando noites em claro do CPD para fazermos os nossos digitarmos os nossos trabalhos. Sim, nos divertíamos, porque não tínhamos computadores (que era algo caro nos anos 1990), mas porque nos ajudávamos, porque convivíamos e porque compartilhávamos um monte de esperanças, de expectativas: tínhamos que nos formar, tínhamos nossos projetos de mestrado, tínhamos nossos sonhos, tínhamos nossas apostas, tínhamos nossas confidências, nossas ambições e nossas angústias. Principalmente, tínhamos uns aos outros para nos ouvirmos, conversarmos, passarmos noites em claro.

Às vezes não haviam conversas, apenas barulhos de teclas sendo rapidamente pressionadas ao longo da noite, o que pode, muitas vezes, ser bastante solitário. Mas não nos sentíamos sozinhos, ao menos eu não me sentia – porque os amigos estavam ali. E isso era o suficiente. E tudo isso acontecia em frente às telas de computador, de fósforo verde ou com os primeiros ambientes gráficos Windows 3.1, que chegaram à universidade naquele ano de 1994.

Por que escrevo esta postagem em um dos editores de textos tipo “old school”, como o JOE? Por que uso um deles agora? Para me lembrar! Para sentir algo parecido com o que era compor textos naquela época, para me sentir como há vinte anos, para saber se minhas mãos ainda se lembram do que era digitar um naquelas condições durante horas seguidas, se meus olhos ainda se cansam diante do verde da tela. Escolhi este editor não porque seja o meu preferido, mas porque eu tive que aprender seus comandos básicos enquanto eu digitava, enquanto eu tentava me concentrar. Fiz isso para me lembrar. Editores de texto são ferramentas, sim. Mas também são instrumentos de criação.

E, sim, meu corpo se lembra. Minhas mãos e meus olhos se lembram. Eu ainda me lembro de tudo o que eu sentia, e de como tudo compensava. Posso não me lembrar de tudo o que aconteceu, mas me lembro de como todo aquele trabalho valeu a pena, pelo aprendizado. E pela convivência.

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