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Autoengano?

Logo na primeira ligação do dia aparece um número estranho em meu celular. Não, não eram os costumeiros chamados à negociação do banco que me escraviza com seus serviços, ou os agradecimentos de praxe da instituição de caridade sondando a possibilidade d´eu ser um pouco mais caridoso. O telefonema veio misterioso, alguém me achou aqui sabe lá Deus de onde.

Faço o que a maioria faz: atendi o telefone.

A voz do outro lado parecia que me conhecia há mais de 10 mil anos; parecia até estar mais feliz em falar comigo do que minha mãe, em nossos encontros bissextos. Me fio em toda a alegria daquela voz e deixo que ela siga.

Sua alegria era tanta que nem perguntou o meu nome, foi logo dizendo: “É o senhor o proprietário da linha diz-o-número-da-minha-linha-direitinho; confirmo; “o senhor acaba de ganhar 15 mil reais em prêmios em nosso sorteio semanal do programa (diz-o-nome-do-programa-direitinho), além de um lindo smartphone”.

Me senti ótimo, claro! Quem não quer 15 mil reais em sua conta mais um smartphone, ainda por cima lindo? Quem sabe eu sairia do aperto; principalmente me sentiria um afortunado, não, um abençoado, um eleito de Deus, um Escolhido para ganhar um prêmio. Praticamente um milagre!

Deixei que a voz continuasse. Deixei que ela se declarasse Diretor Geral do Departamento de Premiações do referido programa:

– O senhor precisa apenas comprovar que esta linha é sua e, para tanto, deve estar de posse do comprovante de sua recarga de celular, com o respectivo número da linha (gostei do “respectivo”!) e comparecer a uma casa lotérica para pagar uma taxa de liberação de R$ 79,99 reais (amei o detalhe dos 99 centavos). O senhor está perto de uma casa lotérica para que possa efetuar o depósito”?

Digo que estou perto de uma, sim, e que preciso apenas de meia hora para sacar o dinheiro. A voz fica ainda mais feliz comigo e agora me trata como se eu fosse um amigo íntimo; pergunta se quero embrulhar o celular para presente e se quero oferecê-lo para alguém e que, após feito e confirmado o depósito da taxa, basta eu fornecer o nome e o endereço para a pessoa que eu queira enviar o celular – caso eu queira. Dispenso do favor e digo que quero o celular.

A voz me pergunta se já estou indo à casa lotérica, confirmo que sim. A voz então me manda o protocolo 20160021-61-00-31 e pede para que eu confirme o recebimento do protocolo, pois “a ligação está sendo gravada e monitorada por quatro auditores independentes, dois de empresas contratadas e dois da Receita Federal”. Repasso o número do protocolo, espero que gravem a minha concordância em ir para a casa lotérica, confirmo que estou a caminho. A voz, exultante, diz que eu não devo desligar  pois meu telefonema “será passado para a sala de espera do programa” e que, caso a ligação caia, eu serei novamente contatado.

Claro que deixei a minha ligação passar para a tal “sala de espera”. Claro que deixei a voz crente de que ia tirar o dinheiro no banco. Claro que fui cortês. Claro que desliguei o telefone. Claro que a voz do outro lado cumpriu sua promessa e ligou insistentemente para mim. Claro que não atendi. Claro que bloqueei o número em meu celular. Claro que, mentalmente e verbalmente, mandei aquela voz tão amistosa e amigável para a puta que o pariu.

Ficar bravo com alguém lhe tentando passar um golpe nem é um problema. A questão principal é o que se pode chamar de “Tentação do autoengano”. Por mais racional que eu seja, por menos que eu acredite em milagres (e não, não acredito em milagres), há uma parte de mim que não só desejava aqueles 15 mil reais como queria ser O Escolhido para ganhar aquela bolada. Sim, confesso: eu queria me sentir não só aliviado financeiramente mas, principalmente, eu queria me sentir o máximo, eu queria mesmo acreditar que, por ser um Eleito, eu merecesse não só a grana, mas a distinção por ter ganho a grana, por ter sido agraciado pela Fortuna. Ainda mais que estou devendo tanto para os bancos (dinheiro) como para mim mesmo (credibilidade, amor-próprio, autoestima, essas coisas). Ainda mais que, depois de anos e anos trabalhando como um condenado e, muitos autoenganos depois, cheguei até aqui, tendo que tomar um milhão de decisões na e sobre minha vida, decisões que me dão tanta abertura para o futuro que chego a ter medo de todas elas! Assim, bem, um golpe de sorte e 15 mil reais não seriam um mal sinal…

Mas não havia nenhum sinal. Não havia fortuna, nem 15 mil reais, nem milagre, nem nada. Ladrões, estelionatários, cafajestes e batedores de carteira, virtuais ou não, ligando de dentro de presídios existem e parece que têm ainda um belo futuro pela frente. Mas não é isso que me frustra, saber do impossível fim dos bandidos, mas sim da impossível realização do autoengano desejado: eu queria aquela promessa. Eu queria aquela realização e a glória de me sentir Iluminado pela Sorte. Salvo, talvez. Principalmente eu queria aquela bolada! Esse desejo o bandido me traiu, abusou do limite tênue entre a minha esperança, o meu desespero e o meu autoengano. Doeu demais perceber que minha tendência ao autoengano era, no fundo, uma brecha para ser ludibriado e invadido, e que eu mesmo tive que agir como um policial para me safar disso. Sobrevivi mais uma vez, mas às vezes sobreviver cansa. Cansa muito. Como exaspera saber que sempre tem gente procurando suas brechas a partir de suas (des)esperanças. Como dói saber que aquela grana toda que eu queria era uma quimera, uma armadilha que eu desejava assim mesmo, mas que eu tinha que recusar.

Dor por dor, pensei eu bem que poderia receber um sinal que ao menos me consolasse em minha decisão. Sabia que sim, pois já vi parentes e amigos queridos cederam ao autoengano e caíram nesse golpe. Mas a tentação do autoengano é isso: uma tentação que precisa ser vencida. Eu precisava de uma confirmação que me desse um pouco de paz, uma certeza de que eu não havia perdido uma oportunidade, no fim das contas.

Foi quando chegou uma mensagem em meu celular:

“Ok será desclacificado?”

Ri. Pouco, mas ri. Ao menos fiquei em paz. Às vezes, um erro ortográfico elucida muita coisa.

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